terça-feira, 22 de abril de 2014

Sobre os 10 anos de suspensão para Johan Bruyneel

É difícil encontrar uma foto de Bruyneel sozinho. geralmente estava acompanhado de um vencedor de grande volta
Durante vários anos Johan Bruyneel foi o diretor desportivo mais popular na esfera do ciclismo. Em onze anos, as suas equipas (com ele no carro ou com um dos seus braços-direitos) venceram nove Voltas a França, dois Giros e duas Vueltas, com Armstrong, Heras, Savoldelli e Contador. Agora Bruyneel está fora do ciclismo e suspenso por dez anos, o tipo de novidade que sairá nos desportivos.

Como adeptos de ciclismo nunca gostamos de ver este tipo de notícias nos meios de comunicação social, os mesmos que por vezes ignoram provas muito mais interessantes que isto. Porém, tenho que compreender o que fazem os diretores dos jornais. Já por várias vezes dediquei uma dezena de parágrafos a falar de ciclismo a sério, aquele que acontece na estrada, no final inclui um parágrafo sobre algo relacionado com doping em género de curiosidade e imaginem qual é o resultado? Qualquer porcaria relacionada com doping, mesmo um parágrafo escrito em dois minutos, é mais comentada que o tema principal da crónica. No caso do Carro Vassoura, que não precisa de comentários nem de vendas para subsistir, é frustrante que isto aconteça. Mas no caso dos jornais que querem captar atenção, mais vale gastarem um quadradinho com este tipo de assuntos do que com ciclismo a sério.

Saltando à frente de tudo isto, vou usar a suspensão do Johan Bruyneel como desculpa para escrever algumas coisas.

Ora, Johan Bruyneel - que já estava afastado do ciclismo - está agora suspenso por dez anos de qualquer atividade desportiva. Acho bem? Claro que sim.

Johan Bruyneel foi o diretor desportivo de uma equipa (US Postal/Discovery Channel) que tinha um sistema organizado de dopagem e só por isso a suspensão é justa, independentemente dos resultados da equipa. Para aqui é indiferente se a equipa ganhou treze grandes voltas ou se nunca ganhou nada. Houve um grande leque de médicos que doparam de forma continuada quase todos os ciclistas da equipa (ou todos) e o diretor desportivo tinha conhecimento, concordava e participava no processo.

Mas Johan Bruyneel diz que está a ser apenas um bode expiatório de uma geração. É verdade? Em minha opinião, sim.

A suspensão de Bruyneel (e dos médicos Pedro Celaya e Pepe Martí) não tem como objetivo principal afastar o diretor desportivo e os médicos do desporto (pelo menos Pepe Martín não trabalhava apenas com ciclistas). O objetivo é mostrar uma falsa limpeza do ciclismo. O tal novo ciclismo que já várias vezes aqui falei.

A pena de Bruyneel é justa mas não é o que mais importa. O principal de toda esta história é aprender com o passado para que este não se repita.

Bruyneel não inventou o doping e o sistema de dopagem da US Postal/Discovery Channel não era tão elaborado quando a USADA quer fazer parecer. Vamos lá parar com essa conversa de pescador que tirou um carapau de dois metros do mar. "O maior sistema de dopagem" o tanas.

Michelle Ferrari ou Eufemiano Fuentes são grandes cientistas mas nenhum deles inventou o doping nem nenhum deles inventou qualquer medicamento. Limitaram-se a usar os medicamentos que estavam (e estão) à disposição de todos os médicos e desportistas, mais facilmente que um agarrado encontra cocaína ou heroína. Fizeram-no com mais eficácia do que a maioria pelos mesmos motivos que existem Prémios Nobel. Há sempre alguém que se destaca.

Por outro lado, algo que também temos que reter de toda esta trapalhada é que um ciclista apanhado, regra geral, é apenas uma parte do problema. A parte menor. Há todo uma cultura de dopagem que começa muito cedo e se estende até ao pelotão de veteranos. Nos juvenis (com 14 e 15 anos) já há jovens que estão dispostos a tomar qualquer coisa que acham que lhes vai ajudar a melhorar o resultado. Não é pelo dinheiro, é por vaidade, algo que permanece durante toda a carreira. Quem conhece o meio sabe que é verdade. Não é por acaso que já tivemos o vencedor da Volta a Portugal de Cadetes positivo. Cadetes!

Fugindo um pouco do tema (de forma propositada)... noto uma enorme diferença entre o tratamento que o público (português, pelo menos) dá quando um estrangeiro acusa positivo em relação ao que acontece quando é dentro das nossas fronteiras. As mesmas pessoas que crucificam os Santambrogios e os Di Lucas da vida, acreditam cegamente quando alguém do pelotão nacional acusa e inventa qualquer desculpa. Muitas vezes, as desculpas dadas deviam vir antecedidas por "Caro Idiota", porque muitas delas devem ser a gozar com a cara dos adeptos. Por exemplo...

Atualmente correm no pelotão nacional fortes rumores de que certo ciclista está com sérios problemas no passaporte biológico. E é normal, porque antes de saírem cá para fora as notícias andam muito tempo a marinar dentro do pelotão. Quase toda a gente sabe e quem não sabe não tardará a saber. Os rumores circulam e a Federação Portuguesa de Ciclismo vai fazer de tudo para que o caso se resolva antes da Volta a Portugal. Mas se os problemas se confirmarem, se houver lugar a suspensão, rapidamente sairá a público uma dúzia de colegas de profissão a defender o companheiro (recordem o que escrevi há um mês, quase no fim desta crónica).

Todo este desvio de tema (propositado) para dizer que não concordo nem com a crucificação excessiva, como se cada ciclista fosse o único a dopar-se, mas também não concordo com a crença de que nunca ninguém se dopou. Sim, há doping, e sim, há uma cultura de dopagem fortemente enraizada.

O ciclismo carece de credibilidade. Depois de Armstrong dizer que todos os controlos anti-doping que fez não serviram para nada, todos os vencedores são alvo de desconfiança. O ciclismo chegou a este triste ponto em que basta alguém vencer para que se desconfie. E disto não culpo ninguém se não os próprios intervenientes. Se Lance Armstrong, o mais controlado de sempre, passou por centenas de controlos sem apitar, como acreditar em alguém que passa meia dúzia deles por ano e reclama que são muitos? Difícil.

A crónica já vai longa. Tentarei abreviar, mesmo que muita coisa fique para outra altura (que chegará).

Não basta os ciclistas dizerem que há dez anos havia doping generalizado e agora é tudo diferente. Não é assim que se vai recuperar a credibilidade e a confiança.

Do ponto a que se chegou, só vejo duas saídas. Podemos tomar o caminho hipócrita do futebol, do ténis ou da NBA. O Rio Ave está na final da Taça da Liga e Taça de Portugal com um médico suspenso pela UCI, David Ferrer chegou à final num torneio do Grand Slam treinando numa academia em que Pepe Martí trabalhava e a NBA funciona em sistema de bar aberto em que de três em três anos tiram um para manter as aparências. É um caminho possível. Acabam-se os controlos, baixam-se as suspensões para meia dúzia de meses, tira-se importância aos casos e seguimos assim. Ou tomamos um caminho sério.

Voltemos ao início, a suspensão de Johan Bruyneel. Johan Bruyneel está suspenso dez anos e até podia ser logo irradiado. Caso arrumado. Mas como é possível que Bjarne Riis seja diretor desportivo de uma equipa? O homem tinha um hematócrito de 60%, mais concentrado que algumas marcas de ketchup, confessou que ganhou o Tour 1996 mamado e continua à frente da Tinkoff-Saxo. Como pode Jonathan Vaughters continuar à frente da Garmin? Uma equipa com um imenso historial de "dopei-me mas foi só uma vez" e um diretor com um imenso historial de "sabia, mas merecia uma segunda oportunidade". Não vou listar todas, mas muitas mais são as equipas que têm no staff membros da geração que se autoproclama negra.

Não vale a pena dizerem que agora tudo é diferente, que é um novo ciclismo. Olho para os planteis e são as mesmas pessoas. Uns eram diretores desportivos no "velho ciclismo" e continuam no "novo ciclismo". Outros eram ciclistas no "velho ciclismo" e agora são diretores desportivos no "novo ciclismo".

Já disse e repeti, faço mais uma vez: totalmente de acordo com a suspensão de Bruyneel, que até podia ser mais longa. Mas não chega. O desporto nunca vai ser limpo. Acreditar num desporto sem doping é como acreditar numa sociedade sem fuga aos impostos ou sem favorecimento de amigos nas obras públicas. Não dá. Mas no que toca ao ciclismo é preciso uma mudança. Seria necessário suspender tudo durante dez anos e, ainda assim, não valeria de nada se a seguir retomasse a atividade com as mesmas pessoas. Mudem as pessoas!

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