segunda-feira, 25 de agosto de 2014

O adeus de Jens Voigt

Há coisas que nos parecem eternas, mas um dia damos de caras com a dura realidade de que tudo tem um fim. É no dia em que Jens Voigt termina a sua carreira, porque se esta não é eterna, o que poderá ser?

Houve algumas ameaças anteriores sobre o seu final de carreira, mas depois havia sempre mais um ano para se despedir. Penso que os últimos três anos foram de despedida e os últimos três Tours foram "o último". Mas o dia final chegou. Foi no domingo e não é possível resumir a carreira de Jens Voigt ou explicar o seu significado.

Regra geral, o final de carreira representa a oportunidade ideal para recordar o palmarés de um ciclista. Nomes de provas, lugares obtidos, datas. E Jens Voigt foi um ciclista de resultados, de um palmarés notável... quando era moço novo.

Venceu duas vezes a Volta à Alemanha, cinco o Critérium Internacional, ainda a Volta a Baviera e a Volta Mediterrânica. Venceu muitas outras etapas e algumas classificações gerais de provas de uma semana, esteve na discussão do Paris-Nice mais do que uma vez, também da Volta à Califórnia e chegou a ser segundo na Liège-Bastogne-Liège. Venceu etapas no Giro e no Tour, envergou a camisola da montanha no seu primeiro Tour e a camisola amarela por duas vezes, em 2001 e 2005.
Com a camisola amarela do Tour em 2001
Começou na francesa GAN, que depois se tornou Crédit Agricole, equipa modesta onde Voigt era uma das principais referências e apostas, com liberdade para quase tudo. Até que em 2004 se mudou para a Team CSC, onde as suas obrigações mudaram, particularmente nas grandes voltas, onde tinha Ivan Basso como líder designado e aposta para o pódio.

Em 2004 Ivan Basso foi o mais forte adversário de Armstrong nas montanhas do Tour, mas Ullrich não desistia. Nos Alpes Ullrich arriscou com um ataque a 60 quilómetros da meta, que mais do que ameaçar o primeiro lugar de Armstrong (já fora de alcance, a mais de seis minutos), ameaçava o segundo posto de Basso. Voigt, que tinha integrado a fuga do dia, parou. Não literalmente, mas pouco faltou. Subiu o Col de Carri quase em ritmo de equilíbrio, à espera do grupo de Basso. Então uniu-se ao trabalho de Landis e Azevedo na frente do grupo. Ullrich acabou por ser absorvido e Voigt criticado pela imprensa do seu país, insultados pelos adeptos alemães. Sobretudo na crono-escalada do dia seguinte no Alpe d'Huez, onde um poster colocava o seu nome e "Judas".

No final daquela etapa estava indignado com as críticas dos comentadores da TV alemã, que acusavam Voigt e a CSC de correrem para Armstrong. "Sabem porque o Ullrich ganhou os Jogos Olímpicos em 2000? Porque eu estava a trabalhar como um burro nos primeiros 150 km! A perseguir cada fuga para ele poupar energia. A minha lealdade é para a minha equipa, o meu líder, o meu chefe", exclamava aos membros do staff no final da etapa, que ficaria registado num documentário que estava a ser feito sobre a CSC. 
"Claro que gostava que o Jan (Ullrich) ganhasse (a etapa), mas não podemos arriscar o lugar do Ivan. Imaginem que não tinha ajudado o Ivan naquele dia, o Jan ganhava-lhe um minuto e no último contrarrelógio ele passa o Ivan, Klöden é segundo, Ullrich é terceiro e o Ivan é quarto. A minha lealdade é para a minha equipa. Se o meu líder Ivan e o meu diretor Bjarne dizem-me para parar e ajudar, não há escolha. Seria um Judas se não o fizesse."
Na CSC correu 7 das suas 17 Voltas a França, um recorde que partilha com Stuart O'Grady e George Hincapie. Foi na CSC que trabalhou com Carlos Sastre e depois com os irmãos Schleck, acompanhando-lhes quando se mudaram para a Leopard, depois para a Radioshack e a Trek.

Um dos momentos mais dramáticos viveu-o em 2009, quando sofreu uma grave queda já na terceira semana do Tour, fraturando vários ossos da cara e perdendo a consciência temporariamente. 

No ano seguinte esteve próximo de abandonar novamente o Tour. Sofreu uma dura queda nos Pirenéus, a bicicleta ficou desfeita e então deu-se conta de que não havia mais carros de apoio atrás de si. A única hipótese parecia ser esperar e entrar no carro vassoura. Mas Voigt é mais duro que isso. Foi-lhe emprestada uma bicicleta de um jovem do público e continuou com ela. Os pedais não encaixavam e a bicicleta era pequena para o seu metro e noventa, mas a determinação de chegar até Paris era mais forte. Pedalou assim, sem saber por quantos quilómetros exatamente, pois o conta-quilómetros ficou na bicicleta partida, mas estima que quinze, talvez vinte. Quando Bjarne Riis tomou conhecimento da situação, entregou a bicicleta suplente de Voigt a um polícia e pediu-lhe que esperasse pelo seu ciclista. Então, com a bicicleta suplente, Voigt concluiu a etapa (e o Tour).

Foi dele a primeira vitória no Pro Tour, no prólogo no Paris-Nice 2005, depois de vencer duas etapas e a geral da Volta Mediterrânica.

Mas os anos passaram e a capacidade de Voigt para o contrarrelógio e para a média montanha ficaram para trás. Em tudo mais, era o mesmo. Extremamente combativo na estrada mas sempre bem-humorado com os colegas de pelotão, os jornalistas e sobretudo o público. São características que sempre teve, mas à medida que a capacidade física ia decaindo, tudo o resto ia sobressaindo.
"É estranho. Corres o mais duro que consegues contra cada adversário. Não os empurras da estrada, mas se vês alguém em dificuldades, tu atacas. No final vamos para os balneários juntos e brincamos "viste o meu ataque?" "Sim, no próximo ano apanho-te!" e somos amigos outra vez. Há sempre tempo para dizer "Olá" antes da etapa. Acho que gente com mau feitio não tem lugar neste desporto."
Uma das suas histórias mais emblemáticas aconteceu no Alpe d'Huez em 2011 e foi contada pelo próprio. Trabalhou para os irmãos Schleck (Andy estava de amarelo), entregou-lhes os últimos bidões e, depois de perder o contacto com o grupo dianteiro, dedicou-se a desfrutar da vista e do ambiente da mítica subida. Quando acabou o seu último bidão, procurou por uma criança e deito-o aos seus pés... mas um adulto roubou-o. 
"Vi isso e continuei a pedalar, mas estava a deitar fumo de frustração e raiva, sim, raiva. Então pensei "Não, isto não vai acontecer!". Estava a ter um super dia. Sentia-me bem. O sol brilhava e era um desses momentos em que me orgulho de ser ciclista profissional. Não ia deixar aquele homem estragar o meu dia. 
Decidi parar, dar meia volta e descer novamente. As pessoas ao lado da estrada olhavam em silêncio. Mas estava apenas à procura do homem que roubou o bidão àquele rapaz. O público estava em silêncio, esperando pelo que aconteceria a seguir. 
Quando encontrei o homem, parei à frente dele, apontei para a mala e disse que aquele bidão era para a criança. Claro que ele devolveu o bidão e eu voltei para a minha bicicleta. E tenho que admitir que me senti muito bem."
A popularidade de Voigt não parou de subir nos últimos anos. Os jornalistas procuravam-no, sabendo que as suas respostas valiam sempre a pena. Quando lhe perguntaram o que dizia às suas pernas, saiu o agora popular "Shut up, legs!" (Calem-se pernas!).
No Tour deste ano, o seu último, aos 42 anos.
Outra das suas expressões mais populares nasceu depois de uma fuga na Volta à Califórnia 2013.
- Jens, penso que nunca olhaste para trás até que o pelotão estivesse na tua roda... 
- Sim, quando ataco assumo o compromisso. Eu tenho confiança, eu sou o motherfucking Jens Voigt, por isso não me vão apanhar. Não olho para trás até que me passem.
E a última vitória do motherfucking Jens Voigt aconteceu precisamente no dia seguinte, em fuga, claro. "Fiz a mesma jogada que faço desde a idade do gelo", disse sobre ela.

Jens Voigt, além de ciclista, tem sido um entertainer. Também um filosofo, um pensador sobre a arte da fuga.

"Penso sempre que, se a mim me custa, ao pelotão ainda custa mais. Tudo o que precisas é um descuido dos rapazes do pelotão, uma distração. Por isso, quando alguém diz que é uma loucura ou uma estupidez tentar algo, é quando ataco."


A última vitória profissional
Este ano, a temporada de despedida, decidiu começar na Austrália. Esteve na fuga do dia na etapa rainha do Tour Down Under, foi alcançado a 16 km da meta, andou alguns quilómetros no já restrito pelotão e então voltou a atacar, à falta de 7, em solitário. 
"Quando fomos apanhados ataquei de novo, o que mais posso fazer? Desaparecer? Não tenho que trabalhar para um líder, não ia ganhar contra os favoritos, por isso achei que era melhor fazer algo com estilo, dar espetáculo, entreter as pessoas. Podia ter funcionado muito bem, se esses rapazes sorrissem e pensassem "oh, é apenas o Jens, um ancião com o número 42 nas costas, como a sua idade, deixemo-lo ir" e depois com boa vantagem já não me apanhava de novo."
Trabalhar para os seus líder, atacar e entreter foi o que fez até ao final da sua carreira, até aos quilómetros finais, da etapa final, do USA Pro Challenge. Entre os últimos quatro colegas de fuga esteve o português Tiago Machado.

Agora vai dedicar-se à família e aos seis seis filhos, dos qual partilhou muitas histórias com os seus fãs através das redes sociais. "Na hierarquia da família, estou apenas acima do cão".

Retira-se assim um dos maiores embaixadores do Ciclismo de Ataque, um exemplo de como encarar a corrida. Mais do que os resultados, permanecem as histórias e as ideias.


"Se vais para a fuga, podes ganhar ou perder. Se não vais, certamente não ganhas."

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